2024-03-07

A extraordinária história de Maria Duran, a hermafrodita catalã que foi julgada pela Inquisição portuguesa

Com base no extenso processo do Santo Ofício, A Hermafrodita e a Inquisição Portuguesa, de François Soyer, conta a história de Maria Duran, a catalã acusada de se fazer passar por homem para enganar mulheres portuguesas e de ter feito um pacto com o Diabo.

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Maria Duran teve uma vida atribulada. Nascida por volta de 1711 em Prullans, uma aldeia montanhosa a norte do vale do rio Segre, na Catalunha, casou aos 14 anos com Ignacio Sulsona, um pastor e lavrador muito mais velho do que ela que tinha contraído sífilis. Assim que lhe foi possível, fugiu. Passou pelo Sul de França e por Barcelona, onde, assumindo uma identidade masculina, integrou o Exército espanhol como soldado, após o que se mudou para Madrid. Mais tarde, viajou para Portugal, e, como mulher, deu entrada em diferentes recolhimentos, casas religiosas que recebiam mulheres desamparadas. Nestes espaços, manteve relações sexuais com outras recolhidas e também com freiras. Acusada de ser um homem, suspeitou-se de que teria feito um pacto com o Diabo, o que levou à intervenção do Santo Ofício.

 

Em 1741, três anos após ter chegado a Portugal, Maria Duran foi presa. A Inquisição levou a cabo uma morosa investigação com recurso à tortura e um longo julgamento para determinar se a catalã era homem, mulher ou «hermafrodita». Após ter passado três anos nos calabouços do Santo Ofício em Lisboa, na zona do Rossio, Maria Duran, que sempre afirmou ser mulher, foi condenada publicamente num auto de fé por ter firmado um pacto com o Diabo que lhe permitia seduzir mulheres. Acabaria por ser libertada e expulsa do reino, não se sabendo o que lhe aconteceu depois.

 

Esquecida durante séculos, a extraordinária história de Maria Duran é agora recuperada em A Hermafrodita e a Inquisição Portuguesa – O Caso Que Abalou o Santo Ofício, do investigador de origem francesa François Soyer, que a descobriu «por acaso» enquanto realizava uma pesquisa no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa. Fruto de uma investigação minuciosa junto de fontes do século XVIII, como o processo inquisitorial, A Hermafrodita e a Inquisição Portuguesa oferece informação valiosa sobre a postura e atuação do Santo Ofício em relação às normas culturais de género e àqueles que as transgrediam, como Maria Duran, e sobre as atitudes relativas a homens e mulheres na sociedade portuguesa do início da época moderna.

 

Dividido em duas partes, o livro explora, num primeiro momento, a vida da catalã, culminando na sua prisão, julgamento e condenação em Lisboa. Numa segunda parte, é apresentado «um mundo que raras vezes vemos registado em documentos do início da Idade Moderna», refere François Soyer na introdução: «A transgressão secreta de normas de género, a sexualidade e a violência sexual em instituições femininas, bem como os medos e os debates em torno do poder que o Diabo podia exercer sobre o corpo humano.» Fazendo a ponte com a contemporaneidade, são estabelecidas relações com a teoria do género como performatividade, de Judith Butler, importante feminista e teórica dos estudos de género, procurando mostrar que «a performatividade de género é crucial para uma transposição de género bem-sucedida».

 

A Hermafrodita e a Inquisição Portuguesa é publicado no dia 14 de março, pela Bertrand Editora.